Tributo a Arthur Miranda - por Edival Lourenço
O dom de ser poeta é talvez a inclinação natural que mais vem contaminada pelo bem e pelo mal. Normalmente nascer com o dom para alguma atividade é uma bênção, porque o jovem não precisa ficar batendo cabeça, fazendo testes de aptidão vocacional para descobrir o que melhor pode desempenhar na vida. Quem tem aptidão de nascença é só seguir a vontade natural, desenvolver suas habilidades e será sem dúvida um grande profissional.
Mas com quem nasce com o dom de ser poeta não é assim. O dom da poesia é quase uma maldição. Porque o dom da poesia não vem limpo, identificável, como nos outros casos. O poeta nato tem na alma um tufão permanente, um caos existencial de extrema crueldade. A poesia não vem só. Ela vem embebida e misturada com estranhamento, sentimentos de inadequação, neuroses e muitas formas de loucura. O poeta Vinícius de Moraes foi direto ao ponto: “o poeta só é grande se sofrer”.
Para o poeta congênito o sofrimento da poesia começa a se manifestar normalmente no começo da adolescência e muitas vezes seus problemas são diagnosticados como sendo os naturais da idade. Juntando os problemas da idade, potencializados pelo dom da poesia, o jovem acaba sendo marcado como um adolescente-problema. Muitos se desencaminham na vida antes mesmo de que possam identificar o sublime da poesia que está no meio do turbilhão de sentimentos. E não é de hoje que esse fenômeno acontece. Nossos poetas mais agudos foram adolescentes problemáticos e vários deles se destruíram antes mesmo de conquistar o mínimo de pacificação e sossego para levar um padrão de vida e comportamento minimamente aceito pelas convenções sociais de cada época.
Lembremos de alguns nomes: Casimiro de Abreu, autor do famoso livro Primaveras, morreu por desregramento antes de completar 23 anos de idade. Outro poeta, dos mais conhecidos dos brasileiros, Castro Alves, Poeta dos Escravos, autor dentre outros, do livro Espumas Flutuantes, também teve vida tumultuada e caótica e se autodestruiu aos 24 anos de idade. Em Goiás, tivemos poetas que se autodestruíram ainda muito jovem, depois de deixarem obras cultuadas: Tagore Biram, autor de belíssimos poemas, vítima de coma alcoólico, morreu no Chile, antes de completar 30 anos de idade; Hugo de Carvalho Ramos, autor de Tropas & Boiadas, um inovador da literatura brasileira, admirado por Guimarães Rosa, cometeu suicídio aos 26 anos; um dos poetas mais pungentes e representativos da contemporânea literatura de Goiás, Pio Vargas, morreu também aos 26 anos, vítima de uma overdose de cocaína.
Alguns, a muito custo superaram essa fase de quase loucura, como Valdivino Braz, Delermando Vieira, Brasigóis Felício e Gabriel Nascente. No entanto sofreram muito até apaziguar o dom poético para levarem a vida como sobreviventes desse violento tufão da alma que tem o sublime nome de poesia.
Nesta noite em que os poetas de Goiás prestam esta bela e justa homenagem a Arthur Miranda, que se autodestruiu ainda garoto, pelo peso suplementar da poesia, quero lembrar um outro Arthur, o poeta francês Arthur Rimbaud, que aos 19 anos já havia escrito toda sua obra poética e acabou sendo uma das vozes que mais influenciaram os vanguardistas europeus. Daí em diante, para não ser destruído pelo caos da poesia, foi levar vida torta como traficante de armas na África e como tal acabou morrendo, ainda cedo, aos 37 anos.
Arthur Miranda, como o seu xará Rimbaud, não teve tempo de ver suas obras publicadas, mas por cuidado e zelo de sua mãe, Clara Down, sua obra vem a público, para que, todos que se interessam por poesia, possam tomar conhecimento de seu talentoso trabalho e do sofrimento que a poesia lhe causou, a ponto de não conseguir a travessia com segurança.
Como amostra do talento de Arthur Miranda, vai estra introdução ao poema Inventário cenográfico:
"Vem comigo,
Enquanto o sol ainda não é poente
Como moribundos anestesiados sobre a mesa;
Sigamos por esta vida
deslizando com a maca em refúgios inglórios
Passemos noites sem dormir em hospícios de luxo.
Onde corredores se alongam como um fúnebre cortejo
Cuja insidiosa promessa
É anistiar-te a uma vil questão . . .
Não perguntes, não saberia eu responder-te.
Sigamos a cumprir essa trama
Desta vida alegórica
Médicos e enfermeiras vêm e vão
A falar de nós:
Dizem que estamos do lado escuro da existência..."
Tenho certeza que Arthur Miranda, jovem afável, mas conturbado pelo furor da poesia e outros sentimentos confusos, será perpetuado em sua obra poética e na memória amorosa das pessoas que o querem tão bem.
Edival Lourenço
Presidente da União Brasileira de Escritores de Goiás
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