A dimensão de Arthur Miranda, o menino/pipa


Quando falamos em dimensão podemos afirmar que existem dois sentidos, um é o que se mede a extensão para avaliá-la, ou pode ser o tamanho de um trabalho  desenvolvido durante toda uma existência ou um volume  de uma coisa qualquer. No sentido espiritual é a passagem de um plano inferior a um plano mais sublime, mais elevado. Desde os primórdios da criação, o homem deseja desvendar estes mistérios, o seu futuro e para essa consecução vem se valendo de alguns conhecimentos que se perderam com as antigas civilizações e muitas vezes, vasculham calhamaços de papéis corroídos pelas traças e já amarelados pelo tempo; escritos hieróglifos ou outras coisas que lhe pareça útil para conseguir saber os acontecimentos futuros. Nada em nosso mundo é imutável, nada é fixo, parado, nem no futuro.   Acreditando nas pessoas e tendo fé podemos alterar muitas coisas, que seriam bem diferentes se não agíssemos dentro de alguma conduta doutrinária, com amor, tolerância e humildade.  Pedras e espinhos, sempre haverá em nosso caminho que, por insensatez e desobediência, muitas vezes nos mesmos as  colocamos.

Ao escrever este preâmbulo lembrei-me de um jovem: O Arthur, que deixou este mundo no ano findo e partiu para outra dimensão com apenas 20 anos de idade, por sinal, lembro-me bem de sua meiga fisionomia.


Hoje, olho rumo à janela e vejo penetrar pelo vão quadriculado resquícios de luz do sol que penetram  entre  as frestas da pequena cortina  despedindo-se do meu hall de trabalho. Algo inesperado aconteceu e a janela de minha alma também se abriu deixando-me atônito diante de tantas incertezas que nos rondam, que ainda poderão advir e que fizeram lembrar-me de um texto do jovem Arthur que escreveu: “dos passeios alucinógenos pelas grimpas de um adorador de Cannabis Sativa. “Um dia ela me conduziu a um estado de loucura tão grande que surtei” Texto para mim, que o conhecia bem, hoje ainda o considero surreal. A sua vida de bom menino, cuja imagem e história hoje vagam apenas no mundo virtual, é como se eu estivesse vivenciando o aparecimento de uma força invisível, talvez almas penadas vindas de outras dimensões, incompreensíveis à minha sensibilidade, que se aproximaram como que querendo demarcar no meu pequeno espaço uma peça teatral, onde entre utópicos e poesias cheias de amor, a janela de minha alma vê alguém tentar encenar neste triste palco da vida o  seu último ato e o jovem Arthur, um menino de boa índole, que se tornou numa obra de sua mãe “o grande urso”, era o seu personagem principal.

Certo dia, na sede da União Brasileira de Escritores, já combalido pelo efeito de remédios, deixou o computador e veio à minha direção, pára por uns segundos diante de mim, toma impulso, me cumprimenta educadamente, mas sem balbuciar nenhuma palavra. Senti sair de seus olhos um pedido de ajuda e era compreensível para um bom menino. Conversamos sobre uma possível visita a um amigo, o padre Luiz Augusto, que poderia ajudá-lo na sua recuperação, mas, antes mesmo que fizesse contato com aquele evangelizador, na semana seguinte fiquei sabendo de sua internação, mas uma vez se embrenhara na rasteira alucinógena. 

O fato irrompeu a sensação de estar “o menino-pipa ou o grande urso” atravessando um sonho irreal, mas real, em se tratando de um jovem indefeso, que não queria magoar ninguém e que tentava enfrentar a floresta Cannibis, sem qualquer armamento à mão à procura de sua própria salvação. A sua fantasia e a dominação da maldita droga, o fazia ultrapassar a barreira da imaginação e atingia o surreal, o inimaginário, e disso não conseguia safar-se. E hoje, enquanto escrevia esta crônica, vagou pela lembrança duas crônicas minhas: “O crack que não driblou a morte” e “O Triste fim de ítalo Pezão”, personagens que perambulavam pelas calçadas, magros, esquálidos, sujos, e os rostos movimentavam apenas um infinito de esgares, como se a câmara do olhar estivesse fora de foco para mostrá-los nas tevês, sempre anônimos, mortos-vivos, pesos-mortos, cobertos por cobertores de lã, encolhidos nos cimentos frios dos becos da vida, histórias extraídas de fatos reais que pareciam ser a de Arthur, mas não era. Arthur era bem apessoado, convivia bem com sua linda e amorosa família, mas a droga não respeita isso. Mas, em se tratando de crack, Arthur foi e sempre será para nós um “crack, mas, crack da bola, do Karatê e Judô; crack da expressão do carinho, do amor, da fraternidade, da amizade, da bondade... E na seqüência de pensamentos que invadem a minha alma, apuro a minha sensibilidade para lembrar-me de suas travessuras, de suas histórias na região de Aparecida de Goiânia, do carinho e amor de sua mãe e irmã. Nunca caminhara só, mas a droga se apoderou dele, inverteu todas as razões e percepções possíveis e quando alguém usa, dificilmente consegue sair dela. Mãe, pai e irmã sofrem, mas não têm culpa e nem devem achar que são culpados. A culpa é da própria Administração Pública brasileira que não dispõem de clínicas especializadas capazes de abrigar e ajudar na cura desses cidadãos.

Sei que além de boa mãe, escritora, poetisa e articulista do Diário da Manhã, Clara Dawn hoje, escreve e caminha no silencio de seu próprio ser. Sei que perdeu o seu menino pipa ou o grande urso, mas Deus deixou no seu colo outro urso, o pequenino Benjamim, mas com o mesmo sorriso, olhar meigo e as mesmas peraltices. Parece curto e pontiagudo o cajado, talvez de eficácia mais psicológica do que física que Deus deixou a ela, mas Deus sabe o que faz. Mais tarde, numa dimensão qualquer, haverá certamente reencontro entre mãe e filho, todos com espíritos renovados, sem medo de se encontrarem em áreas descampadas e suas almas perderem a trilha. Até poderão continuar andando por caminhos incertos ou tortuosos, mas tenho absoluta certeza que decifrarão o caminho, disfarçado de amor em meio à vegetação ou campos floridos do paraíso, pois desde criança aprendemos que quando perdemos o caminho o melhor é retroceder, tentar achar o rastro inicial que Deus nos mostrou e do ponto onde paramos ou de onde devemos partir para uma nova caminhada. Na procura da trilha, por mais difícil for, a mãe amorosa sempre encontrará o seu Grande Urso.

O tempo passou, mas ficou a saudade. Sei que debruça sobre essa saudade, mas enxergando melhor, tanto ao amanhecer quanto ao escurecer e que a penumbra às vezes desperta a dor incontida no seu coração. Quando o sol se despede, sei que espera a lua, que formam um semicírculo perfeito e alaranjado no céu escuro de seu habitat, mas a saudade e o amor a consola, então, é hora de você colher mais um cajado, agora mais lapidado e escutar o retumbar que ecoa pela floresta que aliviará seu espírito e poderá enxergar o Senhor da trilha abraçando forte o seu filho para no final, ampará-lo em seu colo.

Sempre haverá um sinal da estrada, barulhos da noite e alguns tropeções em pedras e raízes, então é hora de aceitar os desígnios de Deus e direcionar o facho da lanterna que iluminam sua vida noutro rumo para buscar os olhos faiscantes de vidas que vagam na escuridão que possa existir dentro de seu próprio ser. Caminhe mesmo com pés descalços e úmidos. Não perca mais a trilha, cuide de sua filha e seu pequeno urso e apascente seu coração. É isso que seu filho Arthur, o Grande Urso quer, porque lá de cima sei que ele está te protegendo e até lhe pedindo perdão.

*Vanderlan Domingos é escritor. 

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em 20 de fevereiro de 2014)

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