Livro: Inventário Cenográfico.
Dedicado
à Clínica Valor à Vida e a todos os
Anônimos do grupo de Narcóticos Anônimos de
Goiânia – Goiás.
Inventário
cenográfico
Vem
comigo,
Enquanto
o sol ainda não é poente
Como
moribundos anestesiados sobre a mesa;
Sigamos
por esta vida
deslizando
com a maca em refúgios inglórios
Passemos
noites sem dormir em hospícios de luxo.
Onde
corredores se alongam como um fúnebre cortejo
Cuja
insidiosa promessa
É
anistiar-te a uma vil questão . . .
Não
perguntes, não saberia eu responder-te.
Sigamos
a cumprir essa trama
Desta
vida alegórica
Médicos
e enfermeiras vêm e vão
A
falar de nós:
Dizem
que estamos do lado escuro da existência.
A brisa que toca na vidraça encadeada,
Soprou
um bafo amarelo
Cuja
boca esbravejou crepúsculos,
Assustou-me,
mas era um pássaro sacudindo as asas
Para
limpar de seu dorso a fuligem das eras,
Voou
furtivo para cima do telhado
Mas
quando percebeu que era só uma noite de chuva,
Encolheu-se
num buraco na laje e adormeceu.
Há
tempos chove aqui
E
hoje os corredores molhados
Anunciava
um dia mórbido,
Não
fosse o fato de ela ter vindo me visitar: minha mãe
A
pessoa que eu mais amo,
Pensei
que poderíamos fazer as pazes,
Mas
ela outra vez foi embora chorando
Aposto,
suas lágrimas embaçaram a vidraça do carro;
Tempo
haverá? Tempo haverá?
Para
moldar outras palavras para encará-la?
Escrevi
estas letras para que ela um dia me perdoe.
Sabe,
é que a minha esperança não está...
Digamos...
reluzente.
Deve
ser porque chove há três dias
E os
rostos que encontro aqui não bastam
Para
o tempo matar de conversação,
Conversas
que informam-me o que é certo.
É
certo que o meu girassol está triste.
O
teu pranto se ergueu aos meus ouvidos,
Mas depois deixaram cair uma questão;
Tempo
para ela, para mim, para nós
Um
tempo para milhares de reflexões e pós reflexões,
Antes
do chá com Respiridona.
Outra
vez essas malditas vozes
Há
um prostíbulo de mulheres que vêm e vão
A
falar de mim.
Eu,
Narciso, belo e desejado.
E o
que me enfurece é que minha mãe e irmã estão entre elas
Fecho
os olhos para parar de ouvi-las
Inútil.
Não adianta fechar os olhos
São
vozes e não visões.
Preciso
da verdade.
Será
que ela liberta realmente?
Outra
vez:
Agora
são os internos que descem os degraus
Correndo,
correndo, correndo...
Eles
têm pressa, precisam acabar comigo
Dirão
eles: "Todos sabemos que você está lendo pensamento,
Nossas
mulheres estão nos traindo?”
Não
direi nada. Nada.
Estou preocupado com as câmeras escondidas nos
quadros das paredes.
Levanta!
Levanta!
Dirão
eles: "Você é odioso. Todos querem que se mate.
Se
mate, se mate, se mate!”
Ousarei?
Perturbar
o universo?
Em
um minuto apenas há tempo
Para
decisões e revisões que um minuto exige?.
Será
que conheço os donos dessas vozes?
Será
que a todos conheci um dia?
De
manhã, de tarde, a noite e nas madrugadas
Elas,
as vozes, medem minha angustia em conta-gotas
Percebo
vozes que sussurram com a agonia deste ano 13.
Sob
o som da música “Stairway To Heaven”
Como
então me atreveria a não ouvi-las?
“Sua
cabeça lateja e não para nunca
Caso
você não saiba, o flautista está te chamando para se juntar a ele
Querida
moça, você ouve o vento que sopra?
E
você sabia que sua escadaria repousa no vento sussurrante?”
Estou
cansado.
Cansado
Desses
olhos que me fixam para depois formularem uma frase
Estou
confinado e gingo sobre essas agulhas
Que alfinetam-me junto à cama,
Então eu começo cuspir e a esmurrar enfermeiros
Esse
sou eu comendo o bagaço
Do
que sobrou do maldito baseado.
Será
que foi o perfume dela
Que
me faz, ainda hoje, divagar tanto?
Meus
braços sobre a mesa repousam,
Tento
escrever...
E
como o faria?
Fatos
cíclicos reviram a minha mente
Numa
sinceridade medonha.
E
recordo com afeto
Da
família querida
E
então, só o que eu escrevo é:
Obrigado
pelo apoio.
Perdoa-me,
Pois
diria eu que muito caminhei em penumbras
E vi
a fumaça a desprender-se das minhas narinas
Coroando
a minha aura de lenta insanidade.
Numa
noite acordei sentado,
Não
entendi o quadro naquele momento
Somente
meneei a cabeça
Achando
graça do meu corpo
Que
não sabia mais obedecer as regras.
Será
que eu estava mesmo acordado?
Levantei e saí,Minha
mãe insistiu para eu levar o agasalho
Não
o quis,
Ao
encontro do sol nascente
Quem
precisa de moletons?
Pisei
na relva,
Toquei
em gotículas de orvalho...
Essa
viagem é como optar pelo suicídio:
O
pensamento se desloca da mente
E a
mente da cabeça
E a cabeça
do corpo.
Verdades
vêm à boca
E a
língua retrai a mentira
Como
um ímã de energias opostas.
Depois
eu disse tudo...
Toda
navalha de traumas e revoltas
Era
como se eu tivesse um par de garras
E
com elas pudesse fazer tantos reféns.
Estirada
aqui ao meu lado
A
Bíblia Sagrada
Após
o chá, os biscoitos, o leite...
Teria
eu forças para um instante de meditação?
Embora
já tenha chorado e jejuado
Embora
já tenha raspado as minhas próprias lepras
Não
sou bom - mas isso pouco importa.
Não
importa o quanto eu chore, reze ou me penitencie.
O
meu pecado está diante de mim.
Planejei
a minha recaída
Sabendo
de antemão que poderia ser fatal.
E
foi.
Foi aí que titubeou a minha grandeza,
E
ouvi, pela segunda vez,
Vozes
vindo de fora...ou de dentro...
Jamais
saberei ao certo.
Eterno
lacaio de uma fixação
Um
amor destrutivo que leva ao vício.
Esquizofrenia: tenta reter um risinho
enquanto
tem nas mãos meu livre-arbítrio
Enfim,
tenho medo.
E
valeria a pena, afinal?
Após
os fortes antipsicóticos
Entre
sonolência e pesadelos,
Alucinações
e instantes de sossego.
Teria
valido a pena
Encerrar
a seriedade do assunto com um sorriso?
Estocar-me numa
farmacomania
E atirar-me
no ventilador da discriminação?,
Dizer:
"Sou louco. E você?
Você
não é capaz de ouvir vozes?”
E
valeria a pena, afinal?
Terá
valido a pena,
Cinco
anos baseados, baseados, baseados...?
Baseados
no exagero,
Discrepante,
desacerbado... baseados, baseados...
Ali
onde se rondeia a erva-brava
Erva
-brava erva-brava...
Ali
todos se enquadram
Na
madrugada, às quatro e vinte.
Entre
o desejo e o espasmo
Entre
a potência e a zoação
Entre
a subida e a decadência.
Minha
mãe chora
“Foge,
Tatua, foge...”
Ontem
ela esteve aqui...
Hoje
estou calado, sentado,
Amado,
envergonhado,
Camadas
distintas dessa minha pintura
Mas
não serão com essas tintas
Que
irei colorir a tela que há de permanecer
No
local de destaque da sala de estar.
Como
pude magoá-la?
Como
posso arrepender-me tão facilmente
Do
que fiz no dia anterior?
Desculpe-me,
eu não sabia...
Eu
não sabia que era o seu aniversário.
Impossível
exprimir o que vaga em minha mente.
Mas
se houvesse um projetor capaz de revelar pensamentos
Numa
tela imensa:
Mostraria
a minha vida
Mostraria
a minha sina
Mostraria
a minha vela
Mostraria
o meu ensaio cenográfico
O
meu espetáculo,
Mostraria
a cena em que volto para casa
Mostraria
a mim tentando acertar um parágrafo
Mostrar
a mim tentando achar a paz
Tentando
ser feliz.
Não!
Não sou Hamlet, quem me dera sê-lo.
Sou
o atormentado pela sorte da minha teimosia
E
para que dela surja algum progresso,
Escrevi
um meticuloso inventário;
Cheio
de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
De
fato, quase ridículo
Quase Idiota... às vezes.
Envelheci...
envelheci dez anos em um.
Vestirei
camisa sem cava?
Cortarei
os meus cabelos?
Ousarei
prestar um concurso?
Aposto
que eu ganharia o Prêmio Pritzker,
Ou
pilotaria um Caça.
Mas
é claro que o toque do baralho vai continuar
Continuo
ouvindo as cartas raspando umas nas outras:
Continue
respirando, continue...continue.
Era
um sonho.
Nele
eu estava caindo de costas no despenhadeiro
e
por entre reis, rainhas e ases
Tentava
virar o meu corpo numa espécie de salto mortal.
O
que eu via, além das cartas
Eram
vários flashes da minha vida
Como
se fossem fotos tiradas de uma mesma imagem,
Até
ser acordado por vozes inumanas.
E
nelas me afoguei.
Temo-as.
Mas ouço-as até dormindo
Num
reino de sonhos da morte
As
vozes estão espasmódicas
E
não é só o vento que assopra com assombro
São
conversas mais distantes e fúnebres
Que
mais se parecem com o som de uma rádio mal sintonizada.
Temo-as
quando de mim se aproximam
Quando
penetram o meu radiano.
Ficarei
livre. A regra é simples:
Evite.
Evite. Evite...
Lugares,
pessoas, situações...
Coisas
do tipo que levam a adicção ativa
Que
levam-me ao reino de sonho da morte
Não
posso mais ignorar a força desse mal
Não
há como trajar disfarces
Máscaras,
hipocrisias, inverdades
Devo
comportar-me com a vida
Como
o vento se comporta no campo: sereno.
Nem
mais um passo em falso
Nem
mais uma recaída.
Senão
terei o dia derradeiro
No
universo da sanidade.
Habitarei
para sempre em terra morta
Uma
terra de cactos
Onde as imagens de acéfalos ambulantes
São
reais e ouço delas súplicas de cura,
Não
posso curá-las.
Sendo
uma estrela agonizante
Prestes
a explodir por completo.
Segunda
vez neste sítio de internos
Encontrei
a paz aqui
Juntos
tateamos novos rumos
Todos
à fala da partilha
Reunidos
na força do Poder Superior.
Não
há nada que eu tenha dito
Que
não seja verdade
Não
há nada neste meu inventário
Que
eu não tenha de fato vivenciado.
Estou
em paz com a minha consciência
Não
tenho reservas,
Não
tenho mais medo,
Não
tenho traumas a serem trabalhados
Não
tenho ressentimentos
Aceitei
a minha doença
Sei
que não há cura e é fatal
Mas
entrego a minha existência ao meu Poder Superior
Estou
limpo e sereno
E
sei que é só por hoje
Mas
um dia de cada vez funciona.
Esse
é o meu ensaio cenográfico,
Essa
é minha melhor cena
Estou
voltando pra casa.
Uma via crúcis no limiar da loucura, registrada de forma sensível pelo próprio viajante. Deve ser divulgado o mais amplamente possível, para a conscientização, sobretudo dos jovens, de que a droga não tem nenhum glamour e pode significar uma jornada sem volta ao fundo do poço, terminando com o gélido abraço da morte. A qualidade literária dos escritos é inegável, e é impossível não se emocionar ao conhecer a triste saga de Arthur Miranda. Vale a leitura e a reflexão.
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